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domingo, dezembro 31, 2006

Mudar de Vida


Quando se entra num novo ano, em muitas pessoas, consciente ou inconscientemente, está presente este desejo: “Quem me dera poder este ano mudar a minha vida!”. Fala-se muito em “Ano Novo, Vida Nova”, o que corresponde a um anseio muito profundo do ser humano, mas a verdade é que a maior parte de nós iniciamos o ano com esse secreto desejo e acabamo-lo com o sentimento de que, no fundamental, não mudámos nada para melhor.

Podemos parecer pessoas muito satisfeitas com o que somos, com o modo como vivemos, mas nos momentos de mais fria análise percebemos que a nossa vida está a ser um fracasso, que não nos sentimos bem, que, se um júri objectivo nos submetesse a “exame na disciplina Vida”, dar-nos-ia nota negativa.

Também as sociedades precisam de mudar. Hoje fala-se muito da premente necessidade de criar uma nova e melhor ordem mundial, com uma nova economia, uma nova justiça, um novo relacionamento entre os povos. Mas é uma ilusão esperar-se mudanças a nível colectivo, mantendo-se um estilo de vida individualista. Como Igrejas também aspiramos a mudar, a sermos este ano mais obedientes à ordem de ir e fazer discípulos, sermos uma Igreja mais fiel a Cristo – mas como o poderemos ser se na maioria nos mantivermos prisioneiros da nossa visão mesquinha, interesseira, arrogante?
Uma reflexão rigorosa sobre as eventuais causas do fracasso pode levar-nos às conclusões que se seguem.

O erro principal
A tendência humana é cada um de nós pensar demasiado em si próprio. A isso, sem uma conotação moralista, poderemos chamar egocentrismo: o homem centrado em si mesmo. É uma tendência natural quando se é criança: é correcto que o centro da vida seja o próprio, pois a criança, sendo um ser totalmente incapaz de sobreviver por si só, está, por assim dizer, programada para requerer a atenção dos adultos; da sua mãe em primeiro lugar, mas também do pai e de outros adultos. Não é erro, portanto, a criança querer toda a atenção sobre si – mas essa atenção tem de ser gradualmente dispensada, à medida que a pessoa cresce – significando total maturidade a total capacidade de autonomia. Mas “total maturidade”, digamo-lo já, é um alvo que se deve ter em vista, não sendo, por certo, muitos os que a atingem, mesmo na velhice mais avançada. Educar é fazer com que a pessoa vá paulatinamente ganhando essa autonomia. Não se espera, nem é desejável, que a pessoa chegue a sentir-se totalmente auto-suficiente, mesmo no plano sentimental, mas é saudável que possamos chegar a dispensar amizades sem solidez e cheguemos a aceitar sem perturbação a solidão. Temos conhecido pessoas que se resignam com convivências extremamente desagradáveis por não suportarem a ideia de ficar sós. Mas essas pessoas seriam mais felizes se estivessem preparadas para viver apenas consigo próprias, se tal fosse necessário.

Subdesenvolvimento psicológico
Sinal, portanto, de “subdesenvolvimento psicológico” é o continuarmos pela vida fora com um elevado grau de necessidade de estar no centro das atenções, de ser elogiado, de ser aplaudido, de receber dos outros (amor, prazer, benefícios). Se chamarmos “felicidade” ao sentimento de a pessoa se sentir bem, de se sentir “realizada”, perceberemos que não pode haver felicidade enquanto estivermos nesse “subdesenvolvimento psicológico”.
Necessariamente, a pessoa egocêntrica sentir-se-á sempre insatisfeita – e mais insatisfeita ainda vivendo rodeada por uma maioria de outros “subdesenvolvidos psicológicos” que também requerem estar no centro, querem brilhar e receber, receber benefícios. Imagine-se uma família – pai, mãe e dois filhos – todos em fase de egocentrismo, mesmo que uns mais do que outros, logo todos exigindo ser amados, servidos, beneficiados, aplaudidos. Na sua juventude, do autor destas linhas houve um autor mais ou menos das margens da sociedade lisboeta, chamado Mesquita Brehem, que pareceu querer dar origem a uma nova filosofia que designava por “Egocentrismo” – e via nela a salvação do ser humano. Deduzia que o nosso mal vem de dependermos dos outros e que é cultivando o egocentrismo que nos libertamos. Mas essa ideia é errada: o egocentrismo não nos liberta, porque ele é prisão.
Quanto mais nos centrarmos em nós mais ficamos dependentes dos outros, mais requeremos a atenção alheia, mais os nossos diabos interiores nos inquietam. Não sei o que foi feito desse autor, mas pareceu-me nos seus escritos que havia uma evolução perigosa para a excentricidade e para a paranoia, podendo ter acabado na loucura, que é também uma forma de prisão.
Foi nesta situação de “o homem centrado sobre si mesmo” que o teólogo Martinho Lutero viu a ilustração do pecado. Para ele, falar do pecado não é falar em termos moralistas deste ou daquele acto, mas é falar da situação do homem dobrado sobre si mesmo, egocêntrico, e portanto, vivendo necessariamente em conflito com os outros. É esta também a atitude da Bíblia. A alegoria da Queda de Adão e Eva transmite esse mesmo ensino e toda a Bíblia mostra que a causa do sofrimento humano é justamente o pecado. Quando os teólogos falam do Pecado Original falam desse pecado do egocentrismo, que dá origem a todo o mal. O livro de Génesis não foi escrito para responder à nossa curiosidade sobre as origens da terra e dos seres que nela habitam, mas para responder a esta questão fundamental: Génesis não compete com a ciência e as suas hipóteses, mas tem de ver com esta questão: “Porque sofremos?”. E a resposta da Bíblia é: “sofremos porque somos pecadores”. O ímpio, isto é, o homem natural, tem muitas dores, diz o Salmo 32:10.

A tarefa impossível
Descoberta ou pressentida que a causa do fracasso da nossa vida é o egocentrismo, pensamos: “Tenho de abandonar esta tendência de tudo referir a mim e preocupar-me com os outros”. Tudo e todos, de resto, nos fazem ver essa necessidade. Até muitas Igrejas tem um discurso nesse sentido: “Melhora o teu comportamento!”. Fala-se da reforma da vida, não no sentido de a pessoa se aposentar, claro, mas de melhorar o seu comportamento. As pessoas tentam - mas a verdade é que, bem vistas as coisas, não só não melhoram nada – como até podem piorar muito – porque se tornam hipócritas, fingem ter-se tornado melhores, mas nada mudou. Pelo menos nada mudou no mais profundo da pessoa. Pôs um verniz por cima do seu carácter, mas num momento de crise, o verniz salta e o carácter mostra-se tão rude como era, acrescentado com o sentimento de culpa.
A Bíblia pergunta: Pode o leopardo mudar as suas manchas? Nesse caso, também vós não podeis fazer o bem, acostumados que estais a fazer o mal Jeremias 13:23. É verdade que o verbo hebraico aqui traduzido por “acostumar”, limmud, também tem o sentido de “aprender” e “ensinar”, razão porque algumas versões dizem “sendo ensinados a fazer o mal”, e portanto poderia argumentar-se que o mal não é inato no ser humano, mas produto do que a sociedade ensina com os seus maus exemplos. É assim que em geral se pensa e foi assim que o filósofo Jean-Jacques Rousseau ensinou: o ser humano não é naturalmente mau, diz Rousseau, mas é a sociedade que o faz mau. Ora bem, a Bíblia diz que não: que não é a sociedade que nos faz maus. Quem tem razão? Nós diremos: tem a Bíblia porque ela reflecte a experiência dos povos. Neste caso a voz do povo é voz de Deus. Não podemos ler a Bíblia com olhos de ideologia, mas leiamo-la comparando-a com a nossa própria experiência e a experiência da História. Não teremos dúvida que poderíamos reconhecer que, sem que o possamos explicar, o pecado está em nós desde que nos conhecemos.

O versículo acima – “pode o leopardo mudar as suas manchas? Nesse caso, também vós não podeis fazer o bem, acostumados que estais a fazer o mal” – pelo contexto é claro que indica o mal no ser humano não como algo adquirido, pela (má) educação ou por influência alheia, mas nascido com a pessoa, exactamente como o leopardo nasce com as suas manchas. A Bíblia não especula, não faz uma afirmação filosófica sobre a natureza humana, mas limita-se a registar um facto real. Quem quiser pode não aceitar essa concepção do ser humano, mau por natureza, mas é a que a experiência individual e colectiva ensina. “Tal como o leopardo não pode mudar as manchas da sua pele, também vós, sendo maus por natureza, não podeis fazer o bem”.

Portanto, deduzindo-se, correctamente, que é a nossa inclinação para o egocentrismo que nos traz a infelicidade, pode concluir-se que nos devemos auto-corrigir. Mas é errado pensar assim, pois tal é o mesmo que uma pessoa nascida com olhos azuis querer, por esforço pessoal, passar a ter olhos castanhos. É uma tarefa impossível mudarmos por nós próprios a cor dos nossos olhos ou mudar a nossa maneira egocêntrica de viver.

Com a Revolução Francesa, muitos homens bem intencionados sonharam o nascimento de um mundo de justiça, de liberdade e de igualdade. Mas duzentos anos depois já todos sabemos que onde houve a oportunidade de realizar esses sonhos manifestaram-se fracassos colossais. E isso porque os homens bem intencionados que quiseram concretizar esses sonhos foram gradualmente fazendo o contrário do que eles próprios queriam fazer, por serem maus – tão maus como os outros que não fizeram nada de grave, porque não estiveram em condições de o fazer.
Continua a ser legítima a discussão dos sistemas sociais e da indispensável acção disciplinadora da política e dos Estados, a fim de se evitarem situações limite de degradação e de insegurança, mas sem ilusões, sabendo que o ser humano continua a ser inclinado ao pecado, isto é, inclinado ao egocentrismo que o leva a querer dominar e a querer ser servido.

Não há quem faça o bem
Pessoas sensíveis suspiram: “Não se pode confiar em ninguém!”. Podem ser pessoas sem grandes estudos e sem grandes leituras, mas provavelmente chegaram a essa afirmação por terem sido mal tratadas pela vida, tendo aprendido a dura lição.
Quem, pelo contrário, cresceu num ambiente protector e sem grandes perturbações, recebendo uma educação que sublinhou a bondade e a polidez, fica impressionado com essa desconfiança e considera-a exagerada ou mesmo maliciosa, mas vale a pena dar um novo olhar e ver se quem diz que não se pode confiar em ninguém não terá razão.
Os mais velhos, que têm uma experiência alargada e não estiveram distraídos no relacionamento nas escolas, nos empregos, nos partidos políticos mesmo com ideários muito generosos, e até a experiência dentro de Igrejas, sabem que não há exagero: em todo o lado a perversidade está presente, introduz-se a mentira, manifesta-se a traição.

Quando, no princípio de 2003, os meios de comunicação social portugueses deixaram atónito o público com a citação de nomes famosos alegadamente envolvidos em casos de abuso sexual de crianças, pessoas humildes juntaram-se em magotes para apoiarem os seus ídolos e manifestarem rejeição liminar das acusações. “Eu tenho a certeza que Fulano está inocente! É uma calúnia!”. Tais atitudes, porém, revelam o fundo católico da consciência dessas pessoas, pois o Catolicismo adoptou desde o século V uma antropologia dita semi-pelagiana muito optimista – e além disso é no seio do Catolicismo que são apontados os “santos”, cristãos e cristãs supostamente muito acima das pessoas comuns e que se notabilizaram, diz-se, por fazerem o bem. Para essa visão optimista do ser humano, há pessoas acima de toda a suspeita, de cuja bondade e correcção é mesmo ofensivo, senão blasfemo, pensar. O Protestantismo, principalmente o de linha calvinista, pelo contrário, fala da corrupção geral da humanidade e crê que não nos podemos iludir nem com o rosto angélico nem com a belas palavras dos homens.

Desconfiar, porém, não significa odiar nem desprezar os seres humanos. Significa apenas reconhecer com realismo a “nossa” condição de pecadores.
Sublinhamos “nossa” para deixar claro que quem fala da corrupção do género humano não é dos outros apenas que fala, mas também de si. Repetimos, no entanto, que falar da condição pecaminosa do ser humano não implica desprezá-lo.
Uma menina de três anos, vendo a mãe a limpar o pó da sala, toma um pano e, pressurosa, dirige-se a um jarrão da China, com cem anos na família, com a intenção de ajudar. Mas a mãe, rapidamente, proíbe-a de tocar no jarrão!
Desconfiada esta mãe? Sim, mas amando a sua menina, pela sua boa intenção, embora com três anos o mais certo seria transformar o jarrão em mil pedaços.
Pela mesma razão, ter esta visão pessimista do ser humano não obriga quem a tem a ser um misantropo, a viver com uma expressão de zangado ou a ser sistematicamente pessimista. Não podemos ter a visão ingénua da personagem do Cândido de Voltaire que achava que tudo ia bem no melhor dos mundos – mas podemos ser homens e mulheres tranquilos que não se iludem a esperar grandes coisas de si e dos outros, mas ser optimistas globalmente por acreditarem que há um desígnio no Universo e no fim o projecto de Deus sairá vencedor.

Mesmo entre um casal que se ama é errado um deles, ou ambos, crer que “pode pôr as mãos no lume pelo outro”. Todo o ser humano está sujeito a tentações e pode falhar. Os pais que educam os seus filhos ou filhas numa atitude de contínua confiança nos outros – “Não sejas desconfiado! Não penses mal de ninguém!” – não estão a preparar os filhos para a vida real e podem estar a criar neles condições psicológicas para grandes frustrações.

Foi no livro de Salmos ainda que São Paulo encontrou uma frase para explicitar a visão bíblica do homem, quando escreveu; Não há quem faça o bem, nem um sequer Romanos 3:12; Salmo 14:1/3; Salmo 52:1/3.

Não se duvida que haja pessoas bem intencionadas, que procuram fazer o bem. Mas nuns de um modo mais sofisticado noutros de forma mais brutal, não é difícil perceber que é verdadeiro o provérbio que diz que “de boas intenções está o inferno cheio”, pois ou os projectos não passam à prática ou a prática tem resultados opostos às boas intenções.

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